Mar e aquecimento global
11:39Por Frederico Brandini
Na época em que as escravas da sua tataravó passavam a roupa com aqueles ferros a carvão e só cozinhavam no fogão a lenha, o carbono emitido para a atmosfera era facilmente re-absorvido pela vegetação das florestas e dos oceanos. A fotossíntese global absorvia o suficiente para manter baixo os níveis de CO2 na atmosfera, sem causar muito efeito estufa. Entretanto, o homem descobriu como usar a energia do carvão mineral, do óleo cru e do gás que brotavam da terra, aumentando a produção industrial de bens de consumo, transporte, enfim, do conforto em geral. O aumento da temperatura média anual nas últimas décadas tem sido atribuido em grande parte ao acúmulo desses gases de efeito estufa emitidos em excesso pela queima de combustíveis fósseis (p.ex., CO2) e também pelas mudanças no uso do solo terrestre, que basicamente significa cortar florestas nativas substituindo-as por plantações e pastagens em sistemas de produção agropecuária mal manejadas com muita emissão de metano.
Isso foi denunciado pela primeira vez por David Keeling, um cientista americano no Havai que iniciou medidas da concentração de CO2 na atmosfera a partir de 1958, constatando que, ano após ano, a concentração média de CO2 atmosférico era maior do que no ano anterior . Dai o problema começou a fazer parte dos foros ambientais e depois governamentais, tornando-se o tema ambiental mais divulgado e discutido pela mídia internacional nos últimos 30 anos. As previsões mais otimistas sugerem que um acréscimo de apenas alguns graus na temperatura média anual da atmosfera terrestre nas próximas décadas pode desencadear transformações climáticas irreversíveis, do tipo “efeito dominó”.
Se tudo isso for verdade, a Terra vai passar por novas transformações ambientais em escala planetária, como muitas que ocorreram ao longo de sua história geológica e evolutiva. A única diferença é que agora a população humana domina em quase todos os rincões do planeta, o que torna o prejuízo sócio-econômico ainda maior. Isso agora vai fazer parte da nossa história e não só da história do planeta. Estamos pouco a pouco tomando consciência que a culpa é do modo de vida da sociedade que criamos. Mais do que nunca, vamos sentir de perto as conseqüências de um modelo de desenvolvimento que a partir da Revolução Industrial evoluiu exclusivamente na direção do abismo ambiental provocado pelo uso abusivo e descontrolado de recursos naturais (leia o “Colapso” de Jare Diamond), ignorando cegamente até meados do século passado o ônus ambiental que assume gradativamente proporções globais desde o final de década de 1960.
O fato é que o tema “aquecimento global” é ainda controverso entre cientistas, ambientalistas e políticos oportunistas. Alguns discordam que o efeito estufa seja por causa do acúmulo de gases industriais, argumentando que tudo tem a ver com alterações na intensidade das explosões atômicas do sol que nos aquece, a exemplo do que ocorreu em eras geológicas anteriores. Ou seja, quando a história ainda era só do planeta e não nossa.
De qualquer modo, qualquer ou quem quer que sejam os culpados pelo aquecimento global, é melhor prevenir do que remediar. Porque agora, apesar do bônus do desenvolvimento econômico ainda a ser da minoria, o ônus ambiental é da maioria. Explicando de um modo mais popular, agora o mar esta começando a bater na bunda do mundo inteiro, e não só na do vizinho.
E por falar em mar, o que ele tem a ver com tudo isso? Para comemorar os 5 anos d’O Eco decidi escrever sobre o papel do mar em toda essa catástrofe anunciada. O mar participa do aquecimento global através do seu papel no ciclo global do carbono. Como já dizia Eisntein, tudo é energia e matéria, e isso inclui obviamente os ecossistemas terrestres e oceânicos. 30% da energia que vem das explosões nucleares do sol, sob a forma de radiação eletromagnética que inclui não apenas a luz visível como também as radiações UV e o calor, retornar ao espaço por reflexão. Os 70% que penetram em nossa atmosfera e chega na superfície terrestre flui de forma unidirecional através do nosso planeta. Ou seja, depois de todas as transformações que decoramos no cursinho (energia cinética, mecânica, potencial, química, elétrica, etc) volta pr’o espaço sob a forma de calor, que se dissipa no vácuo sideral. Os materiais tem massa e obviamente ficam retidos na superfície terrestre pela ação da gravidade. Todos os elementos químicos da Tabela Periódica que formam o planeta tendem a permanecer isolados ou combinados em estado sólido, líquido ou gasoso em compartimentos geológicos, aquáticos e atmosféricos, respectivamente.
Entretanto, uma pequena parte desses elementos se organiza através da fotossíntese (e da quimiossíntese) para formar a matéria orgânica das células e tecidos vivos. A luz solar fornece a energia necessária para a organização dos seres vivos e seus ecossistemas associados. O mais abundante desses elementos no tecido vivo é o Carbono, que forma um esqueleto molecular como base para os compostos orgânicos. O Carbono contribui com 18% do tecido animal e cerca de 45% do tecido vegetal. Quando os organismos morrem a matéria orgânica perde sua energia química de ligacão, e se desfaz novamente em elementos químicos. A energia se transforma em calor e os elementos químicos retornam aos seus respectivos compartimentos não biológicos. O Carbono se combina de novo com o O2 formando o CO2, que é o principal gás que retém calor na amosfera terrestre e o principal causador do efeito estufa. Não porque tem maior capacidade de reter calor, mas porque é muito mais abundante do que os outros gases do efeito estufa como o Metano, o Óxido Nitroso e o próprio vapor de água.
Tudo isso também ocorre no mar que representa 71% da superfície terrestre. O mar troca gases com a atmosfera como parte do ciclo global do carbono através de processos biológicos marinhos (bomba biológica oceânica) assim como na terra (bomba biológica terrrestre). A bomba biológica oceânica é a capacidade que o mar tem de absorver gás carbônico da atmosfera para formar biomassa vegetal através da fotossíntese das algas e transporta-lo para o fundo marinho onde permanece estocado por centenas de anos. O carbono da biomassa das algas (os principais vegetais do mar) flui pela teia alimentar distribuindo-se por todos os níveis tróficos marinhos. Nesse processo, existe sempre perda de matéria orgânica sob a forma de detrito, cuja maior parte é justamente o Carbono. Ao contrário de uma floresta, onde tudo que morre cai rapidamente e se acumula em uma fina camada de solo, o mar exporta mais detrito. Esse detrito com seu pequeno reservatório de carbono vai pouco a pouco sedimentando e se desfazendo no fundo dos oceanos, liberando o CO2 que se mantém dissolvido sob alta pressão e baixas temperaturas. Um processo continuo que vem ocorrendo em doses homeopáticas a milhões de anos, mantendo um reservatório enorme de carbono dissolvido no fundo dos oceanos.
Entretanto, o aumento do CO2 atmosférico não afeta muito a bomba biológica oceânica, porque na construção da matéria orgânica particulada são necessários outros elementos químicos em proporções constantes, e que não estão necessariamente disponíveis quanto há excesso de CO2. É como em uma receita de bolo na qual são necessários, por exemplo, 1 kg de açúcar e 1 kg de farinha. Não adianta ter 10 kg de açúcar se só tem 1 Kg de farinha. Ter mais açúcar do que o necessário não faz a mínima diferença. O tamanho do bolo é limitado pela quantidade de farinha e todo o açúcar restante vai continuar do jeito que está. Com o CO2 no mar é a mesma coisa. Se ele não pode ser usado pela fotossíntese continua sob a forma de gás dissolvido, mantendo o equilibrio na trocas de gases entre o oceano e a atmosfera.
Mas no mar ocorre um outro tipo de processo de absorção de CO2 que não ocorre nos ecossistemas terrestres: A bomba física oceânica. A capacidade que a água tem de manter um certa quantidade de CO2 dissolvido é função de sua temperatura. Quanto menor a temperatura mais gases dissolvidos ela suporta. Nas altas latitudes, a água da superfície é gelada e permite a dissolução de altas concentrações de CO2 atmosférico. Quando a superfície do mar se congela no inverno, o sal é mantido fora do processo de congelamento e se dissolve na água imediatamente abaixo do gelo marinho, já carregada com muito CO2 atmosférico dissolvido. Gelada e salgada ela se torna mais densa e, portanto, mais pesada afundando e “escorregando” pelo assoalho do talude continental das plataformas polares, invadindo as regiões mais profundas das bacias oceânicas do Pacífico, Atlântico e Índico. Quando afunda, leva consigo o excesso de CO2 absorvido na superfície.
Eventualmente a água profunda rica em CO2 pode retornar para a superfície em latitudes tropicais, por ação dos ventos. Como ocorre por exemplo nas ressurgências continentais. Aí a água se aquece diminuindo a solubilidade dos gases e liberando o CO2 em excesso de volta para a atmosfera. Mas o fluxo da bomba física é lento e demora centenas de anos para completar um ciclo; ou seja para entrar nos mares gelados e sair nos mares quentes. A quantidade de CO2 que participa de todo o ciclo aumenta na medida em que o CO2 atmosférico também aumenta devido à nossa atividade industrial. E o que importa é que quanto mais CO2 estiver dissolvido na água, menos CO2 vai estar na atmosfera contribuindo para o efeito estufa. O que não sabemos é até quando o mar vai suportar esse excesso de CO2 participando de seus ciclos oceânicos. Evidências recentes revelam que o mar esta chegando no seu limite quanto à sua capacidade de absorver o excesso de CO2 atmosférico, fazendo com que o acúmulo na atmosfera se acelere ainda mais.
Outro impacto provocado pelo aquecimento global é a alteração do ciclo hidrológico, do qual o mar é parte fundamental. A gravidade terrestre mantém nas bacias oceânicas o maior reservatório de água do planeta. Sem ele não haveria o ciclo hidrológico e, consequentemente, vida terrestre como conhecemos. São as interações entre o mar e a atmosfera, num frenesi de troca de calor e alterações dos gradientes de pressão atmosférica, que formam os ventos oceânicos que transportam o vapor de água e determinam onde, quando e quanto chove e onde, quando e quanto deixa de chover. Isso é o que determina a extensão das florestas ou dos desertos nas latitudes tropicais e temperadas. Também determina o potencial agrícola de um território. Por exemplo, o regime das monções na Ásia respondem pela produção de alimento que sustenta pelo menos 3 bilhões de pessoas, povos habitantes do Sudeste Asiático. Se as monções forem afetadas pelas alterações do ciclo hidrológico, poderá chover menos na região e diminuir a produção agrícola em uma das regiões mais populosas do planeta. A fome e o êxodo em massa de pessoas para outras regiões do planeta provocarão mais impacto social e ambiental devido ao uso de mais recursos naturais.
Além das alteração do ciclo hidrológico, o aquecimento global pode derreter as calotas de gelo polar, com evidências já irrefutáveis na Groenlândia e Alasca, como alertam os cientistas atmosféricos que acompanham a retração anual de geleiras do Hemisfério Norte com imagens fotográficas multianuais. Além da perda de habitat polar, fundamental para a sobrevivência dos animais marinhos do topo da pirâmide alimentar (ursos, focas e baleias) e para a integridade da teia alimentar dos mares polares, o derretimento das geleiras vai aumentar o deságue de água doce para a superfície dos oceanos, sobretudo no Oceano Atlântico Norte por onde passa a corrente tropical do Golfo (a famosa “Gulf Stream”). Essa corrente transporta calor para o Norte da Europa e se não fosse por ela o inverno na Islândia, Escandinávia e no norte da Europa seria muito pior. Se o gêlo do Ártico continuar a derreter, a superfície do mar nessa região ficará mais doce e, portanto, mais leve. A água menos salgada se acumula na superfície, formando uma barreira hidrográfica contra o fluxo da Corrente do Golfo, diminuindo o transporte de calor. Isso explica a ocorrência da “Pequena Era do Gelo” entre os séculos XVII e XVIII. Pesquisas recentes sugerem que entre 1200 e 1850 a velocidade da Corrente do Golfo era 10% menor do que é hoje, provocando um decréscimo da tempertura média do ar de 1°C no norte da Europa. Em algumas regiões e em períodos restritos, houve até o congelamento dos campos agrícolas e, consequentemente, menos produção de alimento. Fome e epidemias associadas à desnutrição assolaram os países europeus na Idade Média. E tudo indica que o mar teve muito a ver com tudo isso.
Noventa por cento da água doce do planeta encontra-se em estado sólido ( = gelo), principalmente no continente Antártico, e menos nas terras ao redor do Oceano Ártico e nas grandes Cordilherias da Ásia e das Américas. Mesmo que não derreta tudo, mas o suficiente para um pequeno aumento do nível médio do mar, poderá ocorrer ressacas nas zonas costeiras de terras baixas na Europa e nas Ilhas oceânicas do Pacífico, capazes de fazer aquela Tsunami da Indonésia em dezembro de 2005 parecer uma banheira transbordando.
Menos mal que agora temos mais consciência da nossa própria culpa em relação ao impacto das transformações no clima global. Mas ainda não o suficiente; como é difícil para uma minoria privilegiada da população mundial (da qual eu me incluo) abrir mão do conforto da eletricidade, do ar condicionado, do gás encanado, do transporte pessoal, e investir mais em energias limpas como a das marés, dos ventos, do sol e dos gradientes térmicos nas regiões tropicais. Mais do que nunca precisamos desenvolver a cultura da reciclagem de materiais industriais e construir casas e edifícios públicos com bio-arquitetura.
Se nas próximas décadas o desenvolvimento industrial e tecnológico da população humana não mudar radicalmente para uma matriz energética renovável e não poluidora, vamos ter que nos preparar para um socialismo de serviços ambientais, repartindo equitativamente recursos naturais limitados. Talvez até brigar feio com os países vizinhos por água em vez de gás.
fonte:http://www.oeco.org.br/Frederico Brandini
Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do Centro de Estudos do Mar da Universidade Federal do Paraná.
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