SEGURANÇA: OS DESAFIOS DA INDÚSTRIA DO SHIPPING

11:23

Há pouco mais de dez dias um navio carregado de carros afundou perto de um arquipélago português, após queimar por duas semanas depois de um incêndio. O episódio joga luz em alguns dos principais desafios da indústria do shipping para os próximos anos, de acordo com o último relatório de segurança da Allianz. Embora o número de perdas de embarcações tenha reduzido em 50% na década passada, mantendo-se no nível mais baixo, não se pode falar em mar de almirante diante de preocupações recentes. O crescimento exponencial dos navios, suas adaptações ao processo mundial de descarbonização, a possibilidade de ataques cibernéticos e a crise humanitária das tripulações trazem riscos significativos para gerenciamento, de acordo com o documento da seguradora. 


Começando pelo tamanho das embarcações, navios que transportam contêineres, veículos (Ro-Ro) e graneleiros aumentaram nas últimas décadas por economia de escala e de combustível, uma tendência que deve continuar com a meta de redução de emissão de carbono da Organização Marítima Internacional (IMO). Desde 1968, a capacidade dos porta-contêineres foi ampliada em 1.500%. Já temos navios equivalentes a quatro campos de futebol de comprimento. O problema é que a infraestrutura portuária não cresceu no mesmo ritmo e os canais de navegação são os mesmos. 


O encalhe do Ever Given, há um ano, no Canal de Suez, foi emblemático dessa situação. Se o navio não tivesse sido liberado com o auxílio de rebocadores, haveria um longo processo de descarregamento dos cerca de 18 mil contêineres a bordo. A título de comparação, em 2019, o porta-veículos Golden Ray tombou nos Estados Unidos e sua remoção levou mais de um ano, custando centenas de milhares de dólares. “O Ever Given trouxe preocupações à indústria de que os riscos associados a grandes navios podem, em breve, superar os benefícios”, assinala a Allianz.


O número de incêndios nessas megaembarcações vem aumentando a cada ano, especialmente nos porta-contêineres, e merece atenção especial no relatório. É a terceira causa de perdas totais no período 2011/2020. Os incidentes frequentemente começam nos próprios contêineres, podendo ser resultado da não declaração de cargas perigosas pelos proprietários. A maioria sai facilmente de controle, obrigando o abandono dos tripulantes e o aumento do perigo para a sociedade.


As adaptações da indústria às metas ambientais da IMO são outro desafio. O objetivo é reduzir a emissão de carbono dos navios em 40% até 2030 e de todos os gases do efeito estufa em 50% até 2050. Isso vai exigir investimentos substanciais em pesquisa para mudanças no design e na propulsão das embarcações, podendo ter implicações para o risco segundo a Allianz, que cita o exemplo do scrubber. A adoção do equipamento que diminui o teor de enxofre proveniente do óleo combustível estaria causando danos ao maquinário das embarcações. “Como vimos nos grandes porta-contêineres, desenvolvimentos que não focam no risco podem levar a consequências indesejadas e ao aumento da exposição, com grande impacto na cadeia de suprimentos”, diz o consultor de risco marítimo da seguradora, Rahul Khanna.


A empresa também alerta para a possibilidade de ataques cibernéticos, uma das questões sensíveis que envolvem navios autônomos, cuja discussão eu acompanho no Comitê de Segurança Marítima da IMO. Em maio de 2021, a companhia Colonial Pipeline, que opera a maior rede de oleodutos dos Estados Unidos, pagou US$ 4,4 milhões a hackers para ter seu sistema de computadores de volta. 


De acordo com a Allianz, todas as grandes empresas de navegação e a própria IMO já foram alvo de tentativas semelhantes. Por enquanto, todas se deram em terra. O pior cenário seria um ataque terrorista e não se pode negar o potencial de estrago ou de bloqueio econômico de um gigante dos mares. Haja vista a explosão no Porto de Beirute, no Líbano, em agosto de 2020, e mais uma vez o Ever Given atravessado no canal.


E há ainda a crise humanitária das tripulações a partir da pandemia, que pode ter consequências de longo prazo. Segundo a IMO, desde a Covid-19, muitos tripulantes passaram a trabalhar mais dos que os 11 meses acordados pela Convenção sobre Trabalho Marítimo da Organização Internacional do Trabalho (ILO). Em março de 2021, estimava-se que 200 mil marítimos permaneciam a bordo diante das restrições de voos e viagens internacionais, com número igual de profissionais aguardando substituir os colegas. 


O problema é sério, pois afeta a saúde física e mental das pessoas em um segmento no qual 80% dos acidentes estão relacionados ao fator humano. De acordo com a Allianz, isso significa também que os trabalhadores não estão sendo treinados e que o setor pode ter dificuldade para atrair novos talentos. A seguradora lembra do encalhe, nas Ilhas Maurício, do graneleiro Wakashio, que derramou toneladas de óleo em julho de 2020. Pelo menos dois tripulantes estavam a bordo há 12 meses, segundo a Lloyd’s List. No trabalho de pilotagem da praticagem, por exemplo, a comunicação com a tripulação é fundamental para a correta execução das ordens solicitadas pelo prático.


Os quatro pontos levantados pela Allianz, entre outros da análise, merecem cuidado redobrado de todos que integram o shipping, a fim de mantermos o alto nível de funcionamento. Estamos falando de uma indústria que movimenta mais de 90% do comércio global, com índice de acidentes de 0,002%. Ou seja, a cada 50 mil operações ocorre um incidente, não necessariamente grave. Pouquíssimos segmentos trabalham com essa eficiência de 99,998% e devemos manter o foco nas margens de erro que o setor opera. 


A praticagem está inserida nos debates em nível internacional e sempre se mostra engajada na superação dos desafios, mas não podemos esquecer que existe um limite da condição de riscos. No fim das contas, quem paga é a sociedade.


Artigo do presidente da Praticagem do Brasil, Ricardo Falcão, publicado no portal BE News https://portalbenews.com.br/editoria/edicao-jornal/be-news-12e13-03–2022/ 

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