Vida microscópica obscura é tema de nova docente do Instituto Oceanográfico da USP (IOUSP).

16:15

Desde criança, a campinense Camila Signori se interessa pelo mar: eram as viagens à casa de seus avós na praia da Enseada, em Ubatuba. Aos 14 anos, ela tentou entrar na base local de pesquisa Clarimundo de Jesus, do Instituto Oceanográfico da USP (IOUSP). Por não ser aluna — “não ter credenciais” —  foi “barrada”, confessa Camila com um sorriso constrangido.
A mais nova integrante do corpo docente do IOUSP, aprovada em concurso no dia 15 de março, concluiu seu doutorado no final de 2014, realizado em período sanduíche entre o Instituto de Microbiologia da UFRJ, orientada por Alex Enrich-Prast, e o instituto de pesquisa norte americano Woods Hole Oceanographic Institution (WHOI).
 
A parceria então firmada entre Camila e o instituto estadunidense, mais especificamente com o pesquisador Stefan Sievert, é valorizada pela oceanógrafa. Sua tese de doutorado foi sobre quimiossíntese e produção bacteriana em ecossistemas marinhos: uma de suas principais áreas de estudo desde então.
“Oceanografia Microbiana: Interface entre Biogeoquímica e Microbiologia”, é assim que Camila faz questão de intitular sua linha de pesquisa. Ela brinca — mas sem negar a intenção sincera — de batizar assim um eventual laboratório no IOUSP dedicado a esse estudo. A quimiossíntese é apenas um dos tópicos da “interface entre biogeoquímica e microbiologia”. Mas, é de grande interesse por causa de suas implicações científicas ainda pouco exploradas.
O processo
“A quimiossíntese é a incorporação do carbono inorgânico e a transformação em matéria orgânica”, define a pesquisadora. Com ímpeto didático, facilita: “É o processo de produção de alimento através da energia química”. É semelhante à fotossíntese, mas utiliza-se de elementos e compostos químicos (independentemente da presença de luz) para produzir energia, que — em qualquer ecossistema — será consumida ao longo da teia trófica. Como não há luz nas profundezas marinhas, a quimiossíntese está relacionada com a sustentação da vida nesses ambientes.
Logo, tal processo participa de maneira importante nos ciclos biogeoquímicos, ou seja, nos trânsitos bilaterais de elementos e compostos químicos entre o meio físico (inorgânico) e os seres vivos (orgânico). Somente microrganismos, no caso algumas bactérias e arquéias (seres também unicelulares e procariontes, mas ainda mais primitivos), realizam a quimiossíntese. Compreende-se, então, o caráter biogeoquímico e microbiológico dela.
“Duas etapas”
Camila aponta que a quimiossíntese em toda sua amplitude pode ser resumida a duas etapas. “A primeira envolve diversos elementos e ou compostos para haver a oxidação ou redução. A energia gerada dessa reação será importante para a incorporação do carbono, produzindo matéria orgânica de uma maneira muito semelhante à fotossíntese”, explica a professora.
De maneira resumida, essas duas etapas são reações de oxirredução e de bioenergética respectivamente. A primeira, também conhecida como redox, acontece na presença contígua entre elementos químicos (agrupados ou não em compostos) com tendência a doar (agente redutor) e a receber (agente oxidante) elétrons. O trânsito das partículas subatômicas implica na produção de energia elétrica.
A produção bioenergética dos seres quimiossintetizantes, segundo o capítulo Chemosynthesis(do qual Camila é coautora) envolve uma série de reações bioquímicas em sequência conhecidas como Ciclo de Calvin e que também se faz presente nas plantas durante a “fase escura” da fotossíntese. Os quimiossintetizantes suprem a integral carência de luz com mais reações prévias de oxirredução. Por mais primitiva que seja, a vida microbiana nas profundezas é apenas adaptada.
Diferentes substratos
A presença de agentes oxidantes e redutores não só define o potencial de produtividade quimiossintética de uma área, mas também sua vida microbiana. A quimiossíntese engloba muitos processos referentes à diversidade de substratos (elementos e ou compostos químicos) oxidantes e redutores, sendo cada tipo relacionado a um grupo preferencial de microrganismos quimiossintéticos. Assim, as reações variam, mas sempre ocorrem em “duas equações”.
Por exemplo, gás hidrogênio (H2) em altas concentrações beneficia as bactérias oxidantes de hidrogênio. O elemento enxofre (S) propicia as bactérias redutoras de enxofre; o composto iônico amônio (NH4+), as bactérias oxidantes de amônia. Além da questão de substrato, tais microrganismos podem ser dependentes de O2 (aeróbicos) ou não (anaeróbicos).
O capítulo elenca algumas relações substrato-microrganismo com base na sua produção energética, mas que  ainda não despertou grandes interesses econômicos.
Dentre os processos quimiossintéticos expostos, encontram-se:
Os hotspots, áreas de maior atividade quimiossintética, dependem da natureza de seus respectivos substratos. Enxofre, um elemento relacionado a regiões vulcânicas, é mais encontrado nas imediações de algumas fontes hidrotermais da crosta marinha. Amônio e gás hidrogênio, por outro lado, são mais presentes nas zonas pelágicas (região onde vivem seres que não dependem do fundo marinho).
História e perspectivas
O funcionamento geral da quimiossíntese, o qual possibilita a vida no escuro, é algo estabelecido há muito tempo. O termo foi cunhado pelo cientista alemão Wilhelm Pfeffer em 1897, inspirado na experiência do russo Sergei Winogradsky na década anterior. É especificamente a quimiossíntese marinha que interessa a Camila e a poucos mais, comparada a outras linhas de pesquisa oceanográfica. E ela é relativamente nova.        
O “surgimento da hipótese da presença de microrganismos quimiossintéticos sustentando a biodiversidade até então desconhecida [em ecossistemas marinhos]” veio com o microbiologista Holger Jannasch a partir da descoberta das fontes hidrotermais por Peter Lonsdale, em 1977, no rifte das Ilhas Galápagos, sagradas para a comunidade científica desde Charles Darwin.
Como pontuado pelo capítulo Chemosynthesis, a área carece de pesquisas em águas continentais e solos, onde também vivem microrganismos quimiossintéticos aquáticos. Além disso, faltam mais análises comparativas entre ecossistemas marinhos diversos.
Isso é um dos motivos para a importância da mais recente expedição do Marine E-tech, um projeto internacional, financiado pela Fapesp, focado na investigação da região da Elevação do Rio Grande. Amostras de crostas polimetálicas, de sedimentos e de coluna d’água (água de diferentes profundidades) foram coletadas para responder objetivos científicos das diversas áreas da Oceanografia.
Camila não esteve em campo, pois o embarque coincidiu com o concurso para novo docente do IOUSP, entre fevereiro e março deste ano. As amostras se juntaram, em seus estudos, às coletadas por ela nas proximidades da Cadeia de Vitória-Trindade, em 2017, e no oeste da Península Antártica, no início de 2016. Estas se limitam à coluna d’água e são voltadas especificamente à análise das bactérias aeróbicas oxidantes de amônia em uma região muito afetada pelas mudanças climáticas.
Essas pesquisas têm sido mais rotineiras para a pesquisadora desde que entrou no IOUSP, como pós doutoranda, à convite da professora Vivian Pellizari. As duas se conheceram em uma pesquisa de campo na Antártica. E, desde então, Camila faz questão de expor seu agradecimento pela cooperação em diversos estudos.
Na segunda semana de abril, entretanto, a professora, que pertencerá oficialmente ao semestre letivo dos estudantes do IOUSP em agosto, dedicou-se a colaborar em aulas da pós-graduação que ocorreram na base de Ubatuba, a mesma da qual foi barrada na adolescência. Ela portou suas credenciais, mas não precisou mostrá-las.
Fonte: AUN - AGÊNCIA UNIVERSITÁRIA DE NOTÍCIAS



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