ENCALHE NO CANAL DE SUEZ: REFLEXÕES INICIAIS SOBRE O CASO “EVER GIVEN”.
11:36por Wilson Pereira de Lima Filho[1]
O mar é uma escola, que a cada dia nos traz
novos ensinamentos. No último dia 23 de março de 2021, um fato se tornou
manchete em todos os periódicos do planeta e passou a protagonizar a agenda de debates
entre inúmeras pessoas jurídicas ou físicas que de alguma forma se relacionam
com a indústria marítima internacional. Refiro-me ao encalhe do Navio Mercante
Ever Given, durante seu trânsito pelo Canal de Suez. O Navio arvora bandeira
panamenha e foi lançado ao mar em 2018 pelo estaleiro japonês Imabari
Shipbuilding, possuindo um comprimento de 399,94m, boca de 58,8m e calado de
14,5m.
Com o desencalhe em 29 de março, encerrou-se o
primeiro capítulo do “Caso Ever Given”. Contudo, os holofotes agora devem se
voltar para as investigações que irão apurar as causas determinantes do encalhe,
que ocasionou bilhões de dólares em prejuízos. Este acidente da navegação[2], em que pese ter ocorrido
em águas tão distantes de nossa Amazônia Azul suscitou no Brasil uma avalanche
de discussões cuja maturação e desdobramentos, certamente, nos trarão
importantes lições.
Neste contexto, julguei pertinente reflexionar
sobre alguns aspectos ligados a esse acidente sem, neste momento, apontar
quaisquer conclusões sobre suas causas, pois investigações de toda ordem ainda estão
em andamento. Contudo, nada impede que sejam conduzidas análises com viés
técnico-acadêmico, navegando, nesta fase, apenas nos mares das possibilidades,
buscando identificar não apenas ensinamentos preliminares, mas também fontes de
inspiração para debates e questionamentos que possam vir a contribuir para o
aprimoramento constante da atividade marítima, inclusive, em nosso país.
O Canal de Suez, até a
ocorrência em lide, era quase que um ilustre desconhecido no Brasil, excetuando-se
para os profissionais ligados diretamente à indústria da navegação, os quais
reconhecem sua relevância. Trata-se de uma via navegável artificial, cuja dragagem
durou quase 10 anos com intensivo emprego de mão de obra egípcia, e foi aberto
para navegação em 17 de novembro de 1869. O seu valor estratégico é altíssimo, sendo
uma das rotas marítimas mais utilizadas no mundo, pois por ele fluem 12% da economia mundial, encurtando
em cerca de 9.000 Km a derrota entre a Europa e a Ásia. O canal se
situa ao nível do mar e corre de norte a sul através do istmo de Suez para conectar
o Mar Mediterrâneo (Port Said) ao Mar Vermelho (Port Tewfik - na cidade de Suez).
Seu comprimento atual é de 193,3 km, incluindo seus canais de acesso norte e
sul. Em 2020, mais de 18.500 navios cruzaram esta via navegável, uma média considerável
de 51,5 por dia.
Ao nos debruçarmos sobre o caso, a primeira pergunta que surge é: porque
o navio encalhou e atravessou no canal? A resposta a essa pergunta pode ser
ensaística, constituindo-se, por ora, apenas em exercício cognitivo sobre as
possibilidades e não é o momento de respondê-la. Contudo, em face da relevância
da temática, proponho-me a despertar debates e reflexões. Inicio minha
abordagem pelos aspectos relacionados à manobra do navio. Navegar no Canal de
Suez exige ações tanto do Navio como da
Autoridade do Canal de Suez (SCA - Suez
Canal Authority[3]).
Para tal, é fundamental que a SCA disponibilize todas as informações e instruções
necessárias, sendo primordial que o canal e suas instalações estejam em
condições operacionais compatíveis com as características e dimensões dos
navios que irão cruzá-lo. Ao mesmo tempo, a embarcação deve adotar todas as ações recomendadas pela SCA, bem
como as medidas preventivas exigidas para a navegação em águas restritas. Essas
providências são numerosas e não ouso listá-las. Entretanto, é fundamental que
o navio apresente todos os seus sistemas operacionais como propulsão, geração
de energia, equipamentos de convés, navegação e sensores, e suas respectivas
redundâncias em condições de pronto uso. O navio deve estar, como diz o ditado
popular, “na ponta dos cascos”. As regras estebelecidas pela SCA, inclusive
limites de velocidade, devem ser fielmente obedecidas, ou não? Em síntese, uma
navegação segura neste e em qualquer canal irá depender de diversas variáveis
relacionadas a quatro vertentes principais: a meteorologia, o canal em si, o
fator humano, e o Navio.
No mar, as condições meteorológicas se constituem em preocupação
constante dos navegantes. Em portos e canais, sob condições extremas, em que os
ventos e correntes oferecem riscos elevados ao Navio, pode-se até proibir a
navegação por um certo período, declarando-se a impraticabilidade[4]
da área. Não há dúvidas de que ventos muito fortes poderiam ter
impelido o colossal Ever Given em direção à margem, deixando o canal bloqueado.
Apesar de muitos anos de navegação, nunca tive o privilégio de cruzar o
Canal de Suez, mas a experiência me permite formular algumas hipóteses, as
quais irão compor uma lista de questionamentos que serão, certamente,
respondidos ao longo dos próximos meses, quiçá anos. Quando um navio transita
em águas restritas e possui dimensões proporcionalmente extremas em relação ao
canal ou transporta cargas muito perigosas, a autoridade reguladora poderia
exigir que o navio transitasse com um certo número de rebocadores com cabos
passados, dessa forma, o procedimento poderia, numa matriz de gerenciamento de
riscos, contribuir para elevar o nível de segurança. Certamente, cada Estado
possui seus regramentos e procedimentos de segurança, mas este é um ponto a
ponderar, tendo em vista a necessária adequação aos preceitos emanados pela
Organização Marítima Internacional (IMO), bem como convenções e tratados
firmados.
Outro ponto nevrálgico é a
atuação do Prático em águas restritas e a sua contribuição para uma navegação
segura. Assim, é bem provável que os aspectos afetos ao
desempenho dos dois Práticos egípcios a bordo do Ever Given e a fluidez das
relações Prático
x Comandante sejam objeto de investigação. Requisitos como facilidades na comunicação
e qualificação dos práticos para orientar o Comandante na condução de um Navio
com dimensões próximas ao tamanho máximo permitido no canal são muito
importantes. Há informações preliminares de que os dois Práticos embarcados
eram bastante experientes, com mais de trinta anos de serviço. Contudo, é de
conhecimento geral que o constante incremento nas dimensões das embarcações que
transitam no Canal tem sido um motivo de preocupação crescente por parte de
alguns desses profissionais que comentam: “os Navios não param de crescer”.
Esse fenômeno, que é uma marca do século XXI,
ocorre por razões diversas, especialmente novas tecnologias, economicidade e
preservação do meio ambiente. As dimensões dos navios em termos de comprimento,
boca e calado tem aumentado de forma extraordinária. E os portos e canais?
Aqueles construídos mais recentemente têm condições de ajustar seus projetos,
adequando suas características aos novos tempos, entretanto, os mais antigos se
vêem obrigados a se adaptarem ou ajustarem parâmetros operacionais, sob o risco
de perderem, em termos de competitividade global. A pergunta que surge quais
são os reais benefícios dessa “escalada dimensional”? Quando nos deparamos com
consideráveis possibilidades de que esses meganavios se tornem potenciais riscos
à segurança da navegação e à trafegabilidade em canais navegáveis, tais
vantagens podem ser questionadas.
A condição em que se encontram os sistemas do
Navio é outro fator fundamental para uma travessia segura. Ele deve estar com o
seu Certificado de Classe[5]
válido e sem restrições para cruzar o Canal. Importante registrar que embarcações
que não atendam aos requisitos mínimos de segurança não poderão cruzá-lo e
todos os documentos pertinentes são exigidos pela SCA antes do trânsito pelo
Canal[6].
Na esteira desta consideração, é preponderante a participação do Estado de
Bandeira, em consonância com o Artigo 94 da Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar, o qual estabelece que todo Estado deve tomar as
medidas necessárias para que os navios que arvorem a sua bandeira, estejam em
condições adequadas e seguras, no que se refere às suas condições de navegabilidade.
Um ponto a debater é até que ponto os Navios que arvoram bandeiras de
conveniência[7]
(Registro Aberto) são efetivamente fiscalizados pelo país de Bandeira. Será que
há uma espécie de relaxação regulatória? Esses fatores podem afetar as condições
de segurança dessas embarcações?
O episódio em lide faz saltar aos olhos a
relevância da disponibilidade de recursos para prestar serviço de assistência e
salvamento, especialmente quando há a interdição de vias navegáveis relevantes.
No caso, pode-se considerar, em que pese o auxílio das forças da natureza, que as equipes foram eficazes, mas
houve a necessidade de inúmeros recursos, inclusive 13 rebocadores e duas
dragas, sob coordenação de empresa especializada (salvage master).
Esse acidente
traz uma série de aspectos que merecem avaliação profunda pelos nossos
advogados especializados em Direito Marítimo que, inclusive, têm conduzido uma
série de lives e webinars sobre o tema. Dentre eles, um salta os olhos e, merece
atenção dos especialistas e aprofundamento de debates: a declaração de avaria
grossa. Consta nas Regras de York e Antuérpia que “há um ato de avaria grossa, quando e somente
quando, qualquer sacrifício ou despesa extraordinária é intencional, é
razoavelmente efetuado ou incorrido para a segurança comum, com o propósito de
preservar do perigo a propriedade envolvida em uma aventura marítima comum”. Entre outros aspectos, o instituto foi idealizado como uma maneira de
minimizar e compartilhar os riscos envolvidos em uma aventura marítima, tendo
em vista as possíveis intempéries da natureza.
Repisando o tema, fazendo minhas as palavras do Juiz do Tribunal
Marítimo Nelson Cavalcante e Silva Filho: a avaria grossa acontece quando uma expedição marítima está sob risco de
perigo iminente e o Comandante, no intuito de salvaguardar o navio e a carga
sob sua guarda, sacrifica parte da carga ou do próprio navio ou seus acessórios
ou, ainda, determina mudança de rota. As partes que suportaram as perdas,
realizadas em proveito dos demais, devem ter seu patrimônio recomposto por meio
de um rateio especial. Relembro que as Regras
supramencionadas estabelecem que se um ato de avaria grossa for derivado de
culpa de uma das partes envolvidas, ele será considerado como avaria grossa e a
divisão entre as partes será calculada normalmente, mas a parte inocente tem direito
de regresso contra o responsável pela mesma. Assim, o tema é complexo e
discutível, acarretando no futuro debates entre juristas e especialistas no
Brasil e no exterior, tendo em vista eventuais questionamentos sobre a
caracterização da avaria, o montante de recursos financeiros envolvidos e a
pluralidade de atores afetados pelo encalhe do navio.
Esta minha rápida navegação não se
propõe a esgotar os assuntos afetos ao encalhe em lide. Vários assuntos afloram
a cada dia e suscitarão discussões intensas. O fator humano vem mais uma vez à
discussão, pois se constata que as principais causas dos acidentes e fatos da
navegação são decorrentes de erro do homem/mulher em suas diversas áreas de
atuação, especialmente a bordo dos navios. A questão é por que isso acontece? A
qualificação dos marítimos está deficiente? Eles estão sobrecarregados ou
fatigados? A recente internalização da “Maritime
Labor Convention[8]”
no ordenamento jurídico pátrio pode estimular ainda mais o debate, visto que a
qualificação e as condições de trabalho dos aquaviários são aspectos que afetam
diretamente a segurança da navegação.
Por fim, ao encerrar esta sucinta
apreciação do acidente, constatamos que quaisquer conclusões ainda seriam
prematuras, mas alguns tópicos certamente poderão se constituir em temas para
ensaios ou suscitar debates, estudos ou a reavaliações de procedimentos:
a)
A Autoridade do Canal de Suez e as
medidas mitigadoras do risco de acidentes da navegação no canal;
b)
A falha humana e os acidentes da navegação. O papel da
qualificação de marítimos e suas condições de trabalho na segurança da
navegação;
c)
A declaração da “impraticabilidade” em canais e vias navegáveis.
Decisão difícil, mas, às vezes, necessária;
d)
A relevância do emprego e da
qualificação do prático em águas restritas, especialmente vias navegáveis de
dimensões reduzidas;
e)
A bandeira de conveniência e o seu
papel na fiscalização das condições de segurança da navegação dos Navios registros.
Podem surgir relaxações regulatórias?
f)
A responsabilidade civil das
Sociedades Classificadoras nos acidentes e fatos da navegação;
g)
O conceito stricto
senso de avaria grossa e o caso Ever
Given. Revisitando as Regras de York e Antuérpia; e
h)
O Brasil e a prestação de serviços de assistência
e salvamento em acidentes envolvendo embarcações de grande porte.
Por derradeiro, concluo este artigo ressaltando a relevância de cada vez
mais nos empenharmos em aprender com as experiências de outrem. Avoco palavras
do historiador grego Plutarco: “o ser humano não pode deixar de
cometer erros, pois é com os erros, que os homens de bom senso aprendem a
sabedoria para o futuro”. Este caso, entre todas as vertentes abordadas, vem a
explicitar a essencialidade do mar para a sobrevivência da humanidade. Faz-se
necessário que os temas navegação e maritimidade continuem na agenda do Governo
Federal, trazendo em sua esteira a consolidação tanto de uma mentalidade
marítima como de uma mentalidade de segurança da navegação, pois o nosso futuro
está no mar.
[1]
O autor é Vice-Almirante (RM1) e exerce o cargo de Presidente do Tribunal
Marítimo (Mai/2021). O conteúdo do artigo constitui opinião pessoal do autor,
não refletindo quaisquer posicionamentos institucionais.
[2]De
acordo com o ordenamento jurídico pátrio são acidentes da navegação: encalhe,
colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e
alijamento. Além de avarias que ponham em risco a embarcação, as vidas ou
fazendas de bordo (Lei nº 2.180/1954).
[3] A Autoridade do Canal de Suez (SCA) foi estabelecida em 26 de julho de 1956. Trata-se de uma autoridade pública
e independente de personalidade
jurídica. A SCA se reporta diretamente ao Primeiro-Ministro do Egito. Possui todos os poderes e recursos
necessários para administrar o Canal.
[4]
A impraticabilidade é estabelecida por autoridade competente
quando as condições meteorológicas, o estado do mar, acidentes ou fatos da
navegação ou problemas de ordem técnica implicam em riscos à segurança da
navegação, tornando perigosa a realização de fainas de praticagem e o tráfego
de embarcações. Nestes casos, normalmente, suspende-se, temporariamente, o
tráfego marítimo na área.
[5]A
Sociedade Classificadora (Organização Reconhecida) credenciada pelo Estado da
Bandeira possui as Regras de Classificação para navios e plataformas marítimas,
estando autorizada a emitir, aprovar ou endossar os Certificados de Classe para
os navios e plataformas marítimas que operem sob a jurisdição da respectiva
Autoridade Marítima, respeitado o contido nos Acordos firmados. A entidade
atestada aplicabilidade do projeto, construção e manutenção dos navios e
plataformas marítimas em consonância com as regras de classe estabelecidas
conforme preconizado nas Normas da Bandeira e nas Convenções Internacionais.
[6] As exigências documentais estão listadas na publicação
“Rules of Navigation” disponível na página da Autoridade do Canal de Suez
(SCA): https://www.suezcanal.gov.eg/English/Navigation/Pages/RulesOfNavigation.aspx.
[7] Em geral, os Registros Abertos de Bandeiras de
Conveniência oferecem vantagens para o registro, como incentivos fiscais, não existindo,
de fato, vínculo efetivo entre o Estado de Registro e o navio. Nesse sentido, boa
parte desses países não fiscaliza, devidamente, a observância das normas em
vigor pelas embarcações que arvoram suas bandeiras. Hoje existem cerca de 40
bandeiras de conveniência.
[8]Governo brasileiro depositou junto ao Diretor-Geral da Repartição
Internacional do Trabalho, em 7 de maio de 2020; o instrumento de ratificação
ao texto da Convenção do Trabalho Marítimo que foi
internalizada pelo Decreto Presidencial n° 10.671 de 9 de abril de 2021.
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