Baleias e golfinhos à vista!
08:45
Fonte: Pesquisa FAPESP
Diversidade de espécies e abundância de animais na costa paulista são maiores do que o imaginado
Em pé, à direita da proa da lancha que oscilava como um pêndulo enquanto deslizava com rapidez, Victor Uber Paschoalini foi quem viu primeiro algo se mexendo ao longe no meio do mar por volta das 11 da manhã do dia 10 de fevereiro deste ano, a menos de 1 quilômetro da Ilha da Queimada Grande, no litoral paulista. Ele achou que eram golfinhos, exatamente o que estavam procurando. Para confirmar, chamou o chefe da expedição, o biólogo Marcos César de Oliveira Santos, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP). Aproximaram-se com a lancha e confirmaram: eram mais de 20 golfinhos-pintados-do-atlântico (Stenella frontalis), com 2 a 2,5 metros de comprimento, que logo começaram a saltar na água límpida ao lado da lancha. Santos pediu para o piloto reduzir a velocidade e, com sua equipe, fotografou os animais – principalmente as nadadeiras dorsais, que funcionam como uma cédula de identidade, por causa das cicatrizes e marcas únicas em cada indivíduo – e gravou seus sons com um hidrofone, colocado na água. Em seguida, com uma flecha atirada de uma balestra, ele coletou uma amostra de pele com 1 milímetro de espessura, para análises genéticas, e 2 centímetros de gordura para análise de contaminantes químicos.
Esse era o início da quinta viagem de uma série de 23 planejadas até 2015 para mapear a diversidade e a distribuição de cetáceos – baleias e golfinhos, também chamados de botos – do litoral paulista. Santos e sua equipe, com base nos animais mortos que encontraram na praia nos últimos anos e nos vivos que estão vendo agora, registraram até agora mais de 300 indivíduos de 29 espécies de cetáceos, o equivalente a 63% das 46 espécies já observadas no litoral brasileiro. Em rios a diversidade de golfinhos é menor: uma nova espécie, batizada de Inia araguaiaensis, a quinta já registrada, foi anunciada em janeiro por pesquisadores do Amazonas, que a encontraram no rio Araguaia e seus afluentes. Embora pouco vistos e pouco estudados, os cetáceos da costa brasileira representam quase metade das 87 espécies já identificadas nos mares do mundo.
Os resultados preliminares sugerem também uma diversidade de espécies e de abundância de cetáceos maiores do que o imaginado – desde as toninhas (Pontoporia blanivillei), um dos menores mamíferos de água doce, com até 2 metros de comprimento, encontrada do Espírito Santo à Argentina e vítima constante da captura acidental nas redes para peixes, até as colossais baleias-de-bryde (Balaenoptera brydei), que chegam a 15 metros de comprimento.
Desse trabalho estão também emergindo novas conclusões e hipóteses sobre as baleias e os golfinhos que percorrem o litoral brasileiro. Comparando amostras de DNA, Santos e outros pesquisadores da USP, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Colômbia e de Porto Rico verificaram que as populações de golfinhos-pintados-do-atlântico encontrados no Sul e Sudeste do Brasil e no Caribe são distintas entre si e não se misturam. Além disso, um equívoco sobre outra espécie está sendo desfeito. As baleias-de-bryde, uma espécie arisca e ágil, que permanecem pouco tempo na superfície, aparentemente percorrem o litoral paulista ao longo de todo o ano e não apenas no verão e na primavera, como se pensava, porque os mergulhadores as viam apenas na temporada de mergulho.
Outra abordagem possível – e bastante usada – de mapeamento das populações de cetáceos é a partir de um ponto fixo. É como se faz no arquipélago de Abrolhos, litoral da Bahia, com as baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae), uma das espécies de maior distribuição geográfica no mundo e a mais estudada no Brasil, em vista de suas características únicas, como as nadadeiras peitorais, que chegam a um terço do corpo, e por sua distribuição espacial e temporal previsível: 80% das jubartes que visitam a costa brasileira se concentram na região de Abrolhos, principalmente de julho a novembro, para terem e amamentarem os filhotes em águas mornas e rasas. O biólogo Salvatore Siciliano, atualmente na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, esteve lá em 1989 e 1990 para fazer seu mestrado e, “sentado em uma pedra com prancheta e binóculo”, como ele recordou, avistou 604 grupos de jubarte (metade era de mães com filhotes) em 191 dias de observação. Nessa época havia equipes de pesquisa em mamíferos marinhos estabelecidas apenas em Manaus, no Amazonas, e em Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Outros grupos se formaram depois, mas os estudos sobre cetáceos antes de 1980 são muito raros, lembra Siciliano, dificultando análises e comparações, diferentemente de aves ou mamíferos terrestres, estudados há três séculos.
Daniela Abras, pesquisadora do Instituto Oceanográfico da USP, esteve em Abrolhos em julho de 2013. Com apoio da Marinha, do Instituto Jubarte, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da Cetacean Society International (CSI), assentada sobre um dos pontos mais altos do arquipélago, ela registrou 500 majestosas baleias, bem mais que as 200 registradas em 2004. “Está havendo um aumento populacional de baleias-jubarte, como resultado da proibição da caça, mas ainda está muito abaixo do que era”, diz ela. Hoje se estima a população de baleias-jubarte em 7.900 animais, que podem ser vistos na costa desde a região de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até o Rio Grande do Norte, ainda abaixo das estimadas 25 mil jubartes antes de começarem a ser intensamente caçadas. A partir de 1650, nas principais cidades do litoral, como descrito no livro A baleia no Brasil colonial, da historiadora Myriam Ellis (Edusp/Melhoramentos, 1969), a caça de baleias era uma importante atividade econômica, para extração do chamado azeite de peixe, usado como argamassa para construções e em iluminação pública, e cerdas bucais, vendidas na Europa para a fabricação de espartilhos. Com barcos de 10 a 12 metros de comprimento, as baleias eram capturadas com arpão, depois abatidas por meio de sucessivos golpes de lanças de 2 metros de comprimento, arrastadas à praia e abertas: cada animal fornecia em média 7 mil litros de óleo. Uma lei federal proibindo a caça de baleias entrou em vigor apenas em 1987.
“Esta é a primeira vez que fazemos cruzeiros oceanográficos específicos para mapear cetáceos nos 600 quilômetros do litoral de São Paulo”, afirma Santos. “Por falta de especialistas e limitações financeiras, antes os trabalhos eram feitos apenas com animais mortos”, conta Santos. Ele próprio, durante o mestrado, percorreu de bicicleta ou mobilete as praias de Cananeia e Ilha Comprida, no litoral sul de São Paulo, coletando crânios de cetáceos encontrados mortos – ao todo, Santos reuniu e examinou 124 crânios. Foi também a primeira vez que um repórter fotográfico – Eduardo Cesar, de Pesquisa Fapesp – acompanhou uma das viagens de fevereiro e passou três dias com os pesquisadores em alto-mar.
Duas semanas antes da viagem, Santos, impressionado com a curiosidade de Paschoalini em sala de aula, convidou-o para completar sua equipe nessa expedição, mas não imaginava o tamanho da sorte do rapaz de 19 anos, agora no segundo ano do curso de oceanografia, com um provérbio bretão tatuado no braço direito, “lute e lute novamente até os cordeiros virarem leões”. Os quatro integrantes da equipe revezavam-se na observação, em turnos de uma hora, com meia de descanso, mas foi Paschoalini quem, duas horas mais tarde, avistou o segundo grupo de golfinhos, desta vez de outra espécie, o nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), também com cerca de 20 animais, um pouco maiores e menos abundantes que os pintados, agora em uma água turva e sob sol forte.
Ao seu lado, a oceanógrafa Giovanna Corrêa e Figueiredo notou que os animais, normalmente dóceis – como o amigável Flipper de um antigo seriado da televisão –, naquele dia estavam arredios. Talvez porque, ela cogitou, estivessem com fome e apressados atrás de um cardume ou incomodados com a temperatura da água, que variava de 30 a 33º Celsius, quase cinco graus acima do habitual. Algas e outros organismos proliferam mais facilmente na água mais quente, formando uma mancha escura que dificulta a visibilidade, como a que se estendeu em fevereiro da costa do Rio de Janeiro a Santa Catarina. Nesse dia e nos dois seguintes – percorreram cerca de 650 quilômetros desde São Vicente até a Ilha do Mel, norte do Paraná – permaneceram atentos olhando o mar, da proa à popa, mesmo com o sol refletindo na água no final da tarde, e não viram mais golfinhos ou baleias. “Em alguns momentos o cansaço é tão grande que a gente vê onda e acha que é golfinho”, diz Giovanna.
Ela acompanha Santos desde a primeira expedição, em dezembro de 2012. No primeiro dia eles e outros pesquisadores do grupo percorreram o mar sem ver qualquer cetáceo, mas no segundo maravilharam-se ao avistar um grupo de 16 orcas (Orcinus orca), a espécie mais encorpada de golfinhos (não, não são baleias) – os machos mais taludos chegam a 10 metros de comprimento e 10 toneladas de peso –, atrás de Ilhabela, litoral norte de São Paulo. Não é comum encontrá-las tão perto da costa. “Passamos quase duas horas com as orcas, observando e fotografando”, relatou Santos. “Sabemos muito pouco sobre elas, quantas são, quando vão aparecer.”
Comparando fotografias das nadadeiras dorsais, pôde-se ver que dois indivíduos do grupo de Ilhabela, um mês antes, estavam perto das praias da cidade do Rio de Janeiro, a 400 quilômetros de distância. Alexandre Azevedo, oceanógrafo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, auxiliou na comparação das fotografias e confirmou que os animais eram os mesmos. Depois de cada viagem, uma das tarefas dos pesquisadores é analisar as fotos das nadadeiras dorsais, por meio de um programa de computador específico, para encontrar as que provêm de indivíduos novos e reforçar o catálogo no site do laboratório, já com 104 animais de duas espécies de baleias e três de golfinhos, representados por suas nadadeiras únicas.
Há também razões para inquietação: em consequência da construção de portos e do aumento do número de embarcações e da poluição crescente na costa, os cetáceos podem estar se afastando da costa e procurando áreas mais calmas. Giovanna Figueiredo, da equipe de Santos, verificou que os registros de avistagem da baleia-franca-austral (Eubalaena australis), com até 18 metros de comprimento e 60 toneladas, antes comuns nas praias mais próximas da costa do Sudeste, escassearam desde 2002, mesmo que a população estivesse aumentando, com o fim da caça. Em uma das viagens, a equipe da USP avistou uma baleia-franca com um filhote na Ilha da Queimada Grande, a 27 quilômetros da costa. Karina Groch e outros biólogos do Projeto Baleia-franca estão atentos sobre os possíveis efeitos da construção do porto de Imbituba, em Santa Catarina, e do aumento do tráfego de embarcações na região, antes um centro regional de caça à baleia-franca. Em 2005, Karina estimou em 500 o número de baleias-francas que visitam regularmente a costa brasileira, das quais 100 se abrigam no litoral sul, principalmente no período reprodutivo, de julho a novembro.
“Estamos afastando as baleias e os golfinhos, por um conjunto de causas, com efeitos cumulativos”, reitera Siciliano, que publicou vários artigos nos últimos anos indicando a contaminação por metais pesados e outras substâncias tóxicas, que devem favorecer, em golfinhos, as deformações ósseas, que ele próprio registrou, e as doenças de pele, que Santos descreveu em 2009. “É uma pena, porque as populações estão se refazendo e os cetáceos estão buscando as baías que ocupavam antes, mas as encontram transformadas em estacionamento de navios e depósito de esgoto.”
Siciliano foi um dos pesquisadores que participaram da elaboração do plano de ação para conservação da toninha, uma espécie que vive na faixa costeira e apresenta alta mortalidade ao se prender em redes de pescadores (Santos está examinando com pescadores de Cananeia as formas possíveis de reduzir a mortalidade de toninhas). Aprovado e publicado em 2010, o plano de ação previa a criação de dois parques nacionais (em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul) e a ampliação de outro, atualmente apenas com restinga, no litoral norte do estado do Rio, de modo a se limitar um espaço adequado para toninhas, tubarões, raias, tartarugas e outros animais marinhos. Siciliano, ao comentar que os parques ainda não foram criados, lembrou-se da resistência para a proibição da pesca e a transformação em parque nacional de uma área cobiçada para a construção de portos. Em uma das reuniões sobre a criação das unidades de conservação marinhas, ele se lembrou, um dirigente de um órgão público ambiental perguntou aos pesquisadores: “Afinal, para que serve uma toninha?”. Em uma peça do teatrólogo Bertolt Brecht, um cardeal fez uma pergunta parecida enquanto se recusava a ver pelo telescópio de Galileu: “Serão as estrelas realmente necessárias?”.
Fonte: Fapesp
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